acatalepsia

November 27, 2007

AB... ou paradigma da impossibilidade do amor

A história é, como toda história, retrospectiva, e, como toda história, verídica. Farei um enorme – grandíssimo – esforço narrativo de me ater à fidelidade dos fatos que irei inventar. Para tanto, saibam logo que isso implica em dor, sofrimento, concentração, morte, entre outras implicações menos românticas. Morro um pouco pra que a história nasça. Retraio a minha mentira pra que sua verdade brote.

Houve um tempo em que havia um rapaz chamado A. Nesse mesmo tempo havia também uma simpática garota chamada B. Não omito os nomes. Chamavam-se assim mesmo. Nesse tempo, A e B se bastavam. Adentremos então ao cenário e à dramaturgia de folhetim: A conhece B. (Não seria correto dizer que B conheceu A, no mesmo instante. Não vem ao caso dizer o porquê, mas me defendo cabalmente, indignado: - Qualé! Também não tenho como saber de tudo!)

Retomando, A conhece B. A ainda não sabe, mas B será dentro em pouco a sua namorada. A inicia uma estranha conversa com B. Fala sobre a necessidade de adotar uma postura mais consoante com a vida que tem. Não se sente autêntico. Estabelece relações fortuitas com garotas fúteis, seguidas vezes, sempre aos sábados. Passa os domingos a lamentar as sabatinas. Sofre amargamente e sozinho. Mas não é lá de se entregar, e, diagnosticando a causa errada, passou a odiar os domingos. Queria transformá-los em segunda e foi procurar um trabalho, de domingo. Foi indicado a um rabino preguiçoso, que pediu a ele que sublinhasse em azul todas as ocorrências da letra R na Torá. Demoraria cinco domingos, um pra cada livro. Daí em diante, A não mais lamentou domingos, e, mergulhado no misticismo judaico, adotou a prática cabalística pra tudo que lia a partir de então. Completou o vazio do primeiro dia, sublinhando Rs, compulsivamente. Reconheceu-se um cabalista quando descobriu que determinada edição de uma revista semanal tinha 36 Rs em todas as páginas. Transformou-a em um texto sagrado.

B demorou a entender do que A falava. E ainda não descobriu o motivo de ter falado tanto, contado tantas coisas em tão pouco tempo. Mesmo sem fazer qualquer sentido, se interessou pela última parte. Era afeita a coincidências. Buscava nexos naquilo que aparentemente não havia, e, assim, achava que o tédio era fruto de uma sucessão de alegrias parciais, interrompidas por um telefonema. Irritava-se com o toque de qualquer telefone.

A e B começaram a namorar. Nunca aos domingos e nunca por telefone. A agora é autêntico. Cabalista, dono de um peculiar texto sagrado, namorado de B. Tem a exata certeza de ser único. B sabe que é a única a perceber as coisas. Notou que pela junção de seus nomes poderiam dar início a uma série finita de signos, capazes de gerar o mundo. Tinha forte tendência metafísica e um namoro alfabético.

Eram, assim, felizes. Nesse tempo A e B não mais se bastavam. A ânsia combinatória de B tornou-se dependente do trabalho sublinhar de A. Achava-se tola ao lembrar das superficiais coincidências que encontrava antes do namoro. É claro!, pensava. Nada podia haver antes de A, o antecedente necessário àquilo que ela era. Tornou-se também discípula da edição nº 26, ano 5, da adorada revista. A se impressionava com cada palavra de B. Via nela a possibilidade de encontro do sentido da articulação de todas as ocorrências de R no mundo. Juntos podiam tudo.

Passaram a ser AB, e não mais A e B. B escrevia seus nomes em corações vermelhos, sempre seguidos de reticências. AB... A era menos romântico, mas percebeu que B era um R sem falha, uma versão mais bem acabada do que buscava em todas as coisas. Foram lindamente felizes, impregnando tudo de sentido, porcas, baralhos e sabonetes.

Aparentemente mais uma bela história retrospectiva e verídica de amor. Mas se lida nas entrelinhas, como faria B, pode-se notar o princípio do fim. AB não mais atende à necessidade de autenticidade de A. Em breve estará novamente angustiado, carente de identidade e cheio da falta de regularidade das ocorrências de B, ao aplicar uma perspectiva nova a cada leitura que faz da vida, da morte, da alma, do mundo. Rapidamente para ele, a beleza da fala da namorada se transformará em odiável apuro retórico acerca de questões sem sentido. B, ao folhear a revista sagrada, encontra um R não sublinhado, na página 72. Desmorona em choro copioso, reconta a página 73, a 15, a 21. Nada mais faz sentido. A é uma fraude.

Voltemos ao cenário. Tarde de maio, indiferentes a presença um do outro, perdidos no nascimento de cada uma de suas infelicidades, A se aborrece com B que diz, angustiada, que nada principia em AB... que a posição das letras no alfabeto é contingente, que o início da cadeia poderia ser em G, em O, em qualquer uma, bem como a seqüência poderia ser outra. Ele diz a ela que a sua tarefa de sublinhar Rs, assim, não faria qualquer sentido, por desconsiderar a décima oitava posição da letra em relação às outras, motivo caro ao rabino preguiçoso. B concorda, fala que nada mesmo faz qualquer sentido, a vida, a morte, a alma, o mundo. Diz aos gritos que a página 72 tem 37 Rs bem contados e que tudo que ele acreditava era a maior das bobagens que ela já tinha ouvido. Faço aqui uma pausa. Precisaria ser longa. E silenciosa. Já se sabe o que acontece depois, não se deve subestimar os leitores, jamais! Choraram ambos, se abraçaram, espernearam, mas nada mais falaram.

Voltaram a ser A e B. Felizes e infelizes.

Omiti momentos mais dramáticos, acrescentei algumas vírgulas. Não me perguntem o que se fez deles depois. Gostaria de saber, mas morro aqui, pra que eles nasçam. Afinal de contas, estou amando.

November 23, 2007

Cada vez mais, nada

Olho meus dedos tocarem as teclas. Olho a tela, retangular, brilhante, lisa. Olho o pouco cabelo que me cai aos olhos. Ouço um discreto tic-tac das horas. Ouço algo que vem da rua, e o resto, eu sei, é silêncio, ainda que não o perceba. Sinto cheiro de borracha queimada, que nem imagino de onde vem. Sinto pouco frio e meus olhos arderem. A luz da tela contrasta mais, à noite. Contenho palavras pouco simpáticas pras pessoas mais queridas. Seguro no peito, dor. Não seguro nada entre as mãos. Arranco com os dentes, unhas. Com o que resta cutuco o que resta da outra. Nada mais resta.

Aproximo-me de mim, sozinho. E quanto mais próximo mais estranho, mais avesso, mais distante. O que me sobra da análise são as letras. Nada mais. Não sou nada nem ninguém. Aquilo que posso fazer de mim, não faço. Aquilo que quero fazer de mim, também não faço. Aquilo que querem fazer de mim, não deixo que o façam. Retorno às letras, palavras, frases, em busca de algo diferente desse nada. Encontro.

Ainda não sei o que encontrei. Não sei explicar. Não parece muito difícil, de nenhuma façanha sou capaz. Estala na ponta da língua e não sai. Pudesse cortá-la, o faria. Posso, mas não faço. Devo, mas não faço. Isso, de mim não querem. Aperto na mão os dedos, cerro os olhos, controlo o arfar.

...

Passaram-se duas horas de quando comecei as letras. Nada mudou. As paredes continuam solidamente mais relevantes que qualquer linha. Talvez o espaço do quarto tenha se reduzido um pouco. Pareço oprimido? Não, nada que lembre um claustro. O ponteiro se move lento e alto, sem fazer sentido. Quantos dias couberam nessas duas, ou três, horas? Tempo bobo. Nada entende de tempo.

...

Alecrim. Pastilha de menta. Régua de plástico transparente. Tic-tac arrastado das horas. Tudo o mais que se distingue de mim, pra mim, agora. Senhores e senhoras sinceras, pelas quais queria/devia me apaixonar. Como consigo ser tão piegas?

...

Serena em mim, que disso preciso.
Onde não há luz, som, vida ou risco,
há/não há (?) outros rechaços,
por fazer de mim pressentimento.

Cala-me a voz que nada diz,
faz-se senhora velha e surda
na insensata ausência de contraste
face à noite, clara/escura.

Vazio concreto e inefável,
pálido indício de certeza pétrea,
ser na morte, pra morte,
sem outro lugar, cabimento.

Valha-me sorte!
Da dor não quero mais um pio!