acatalepsia

June 23, 2006

A taça do mundo é nossa?

Começo com um clichê, pra contextualizar: a bola rola entre as quatro linhas. Sob o tapete verde desfilam esperanças, sonhos e angústias. Passeiam também euros. Muitos euros. A soma das cifras chega a níveis indecifráveis. Altíssima concentração de valorizado capital humano, sob apenas algumas centenas de metros quadrados. Alguns tops – e é nossa a principal vedete, gaúcha, esguia, hábil e sorridente, destaque também fora do palco, destaque absoluto no show do intervalo, dona dos quinze minutos onde todos os demais se tornam coadjuvantes. Símbolo do nosso estilo, exemplo do diferencial, marco da superioridade. Findado o jogo, a sensação é de que nada disso tem nenhum valor, e todos se igualam.

Passo agora pro estágio da observação: estranho, mas parece que cruzada a linha do meio campo, para além das gramas onde se fixa nosso estandarte, tem também outros onze homens. Iguais em geral, mais magros, menos talentosos, mais rápidos, menos presunçosos, mais esforçados, porém menos simpáticos. Estranha a constatação, porque até então era como se não houvesse ninguém. Entraríamos em campo pra desfilar a superioridade absoluta do brazilian way of life, que aos olhos do mundo se reduz ao futebol e ao carnaval.

E estabeleço então uma espécie de diagnóstico: o mal do qual sofremos, quando o assunto é futebol, é a terrível mania etnocentrista, mesmo sem etnia, de nos colocarmos acima de qualquer suspeita, como se o hábito de vencer fosse parte de nossa natureza. Esse pecado original faz com que esqueçamos e desconsideremos um ingrediente indispensável do espetáculo: o adversário. Não importa quem seja, não importa a circunstância e nem a situação, só nos resta sermos embalados pela ufania tupiniquim que escorre pela televisão, e que não sabe aonde enfia a cara quando o adversário se faz notar. O mal assim me causa sempre um mal-estar – na vitória, quando se confirma, e na derrota, quando emergem os famosos profetas do acontecido, que se filiam a um partido dos descontentes, mas que não foram capazes de diagnosticar corretamente o mal. Pelo contrário, endossavam o coro que nos cega, mas não se sentem nada mal ao pular do galho podre pro chão firme.

Para não me alongar demais: talvez devesse cessar a maratona de impropérios que nos agigantam. Talvez não devêssemos nos alienar tanto, a ponto de falar só de nós mesmos. Não inventamos o futebol, não demos nenhuma grande contribuição tática ao esporte, não nascemos pra isso mais do que ninguém. Não transformemos o efeito em causa, a contingência em regra, um delírio em absurdo.