acatalepsia

July 13, 2006

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Saio da cama sem me levantar. O dia arranca das dobras mais cedo do que imagina quem persegue a sombra de se esconder da culpa. Não penso, sou só pensamento. Algo que já não se separa do que fica inerte quando saio da cama. Agora aqui estabeleço normas para agir com calma, para abandonar o quarto e revisitar a cena que o ato da noite anterior não prevera. O que se é capaz de fazer por amor é o mesmo que se pode fazer por ódio? Os limites das paixões não encontram barreiras morais e as conseqüências se tornam impensáveis e é então preciso mensurar o alcance das ações e saber que engolir seco aquilo que se planta não é de forma alguma uma tarefa agradável. Caminho pelos meus pesares, sem me fazer ouvir. Escuto sua voz vazia através de um espelho. Não há mais a possibilidade dela dizer novas palavras. Não há mais a possibilidade dela me ferir, embora nada do que ela tenha feito por si mesma tenha sido tão nocivo quanto aquilo que fez por mim. Adianto o dia ao, enfim, sair da cama por inteiro. Cambaleio por fraqueza física. Aperto os olhos por latejar a testa. Encolho por tremer de frio e ignoro a falta que ela já me faz. De ontem, meros lampejos. Um rótulo em espanhol e uma coloração amarelada como aquilo que expeli pela boca. Um banheiro verde e uma garota de cabelos ruivos, ambos simpáticos. Contracenando com a antipatia do algoz da noite. Poucas falas e muito riso. Gracejo boçal e abate sem beijo. Garanto companhia pro resto da noite que parecia longa e nem lembro mais como ficara a casa. Quanto tempo leva pra que o amor se desfaça? quanto tempo leva pra que se transforme em ódio? quanto tempo leva pra que esse ódio seja capaz de qualquer coisa? Ausentar a razão das escolhas e submergir ao sabor das paixões. É assim que se deixa de ser humano? é assim que se elimina a distinção, o que difere? Até que um rapaz na mesa ao lado se mostra radicalmente descontente com a sua companhia e tira a mão de suas pernas para quebrar-lhe um copo na cabeleira loira da garota que porventura o ofendera. Flashes de sorrisos confidentes entre o amarelo e o vermelho. Gritos de horror ao meu lado e sangue que igualava a preferência nos cabelos. Não me lembro do após a não ser da falta de um outro amarelo. Chega a segunda garrafa e agora já não sou nada além do que permanece inerte sentado no banco do bar. Ninguém mais me vê, e eu não mais vejo ninguém. Ignoro o horário e ignoro o preço e ignoro o fardo. A deixara em casa, trancada no quarto, proibida de fazer qualquer coisa que amputasse novamente a minha honra. A ciência do ato bandido, da libidinagem sem o meu consentimento e sem mim, da maledicência que me dirigiu em defesa própria e que prova a premeditação. E que me irrita, que me faz covarde, que me faz iníquo, que me desvia o olhar desse seu corpo nu e magro e branco e sujo e que eu amo. A desmedida no falar, o excesso de palavras talvez tenha sido a causa maior do impulso. Ficasse calada e eu estaria ao seu lado chorando e perdoando. Falasse menos e eu estivesse ao seu lado chorando. Mas falaste tanto que o golpe que acertei na boca era mesmo a única ação possível. O que viria depois, contudo, não fora mesmo necessário. Desacordada a amarrei na cama. Posicionei o espelho a sua frente e arranquei com as mãos cada fio dos seus cabelos. A beleza se apossou do rosto que antes também era belo, mas agora não mais se escondia. As lágrimas escorriam com parcimônia, talvez por medo talvez por prazer talvez por desejo talvez por vaidade. Quantas paixões uma mulher é capaz de manifestar por lágrimas? todas? ao mesmo tempo? A alma feminina já é por demais fetichizada. Enquanto ela se contorcia desfiz o nó das mãos, sai e tranquei por fora a porta do quarto. A janela não era uma opção e o que restava era mesmo esperar que eu voltasse, frio e calmo, me desculpasse e outra vez a amasse. Mediu seus atos o pobre homem? pensou na reação? ou simplesmente não pensou? Pensei naquilo e não me assustei, de volta à razão tinha meus atos justificados em cada uma de suas palavras que se repetiam lentamente em mim. A última vez que a vi foi através do espelho que encarei ao fechar a porta. Fui pro banho e não me senti limpo, vesti qualquer coisa e sai pra esquecer, pra que a memória fosse levada com o vento o tempo o álcool a moça, qualquer um. Agora, enquanto estabeleço normas, tento recordar as falas, o que houve antes do álcool, e examino se o que fiz não teria como causa a bebedeira futura. Não, a embriaguez justifica a amnésia, mas se isenta da crueldade. Saio do bar sem entender o por quê. As luzes acesas para que a loira ruiva de sangue fosse atendida encomendaram as despedidas. Caminho pra casa e espero sentado na calçada um motivo para entrar. A última imagem dela no espelho convida para o acerto de contas. Entro. Silêncio. Sirvo um copo d’água prevendo o peso da ressaca no dia seguinte e ignorando o sobrepeso de consciência. Tateio no bolso a chave do quarto e de uma vez abro a porta. No espelho a primeira imagem é fragmentada e causa estranheza. O cabelo de volta à cabeça a pele antes sem cor turva. A visão direta esconde o pranto e o rubor que cobre o chão atrás da cama. Cortara o pulso. Quebrara o espelho e cortara o pulso. Reto e fundo. Pingou a vida a passos lentos enquanto eu caminhava pra esquecer.