acatalepsia

August 31, 2006

A tripartição de Lígia

Contados três dias, chega-se ao dia de hoje, em que Lígia observa paredes nuas e quartos vazios. Essa aparência se faz dramática em contraste com o que se passa por detrás de seus olhos – com o que pensa, com o que sente, com o que ama. É por isso que agora ela está ali parada, olhando a parede que divide o que era a sala do que era a copa. O indício de habitação que resta não pode ser percebido e se resume às figuras de flor coladas por dentro da porta do armário.

Lígia respira e reconstrói os três dias anteriores, observa caixas imaginárias empilhadas na cozinha, que diminuem na medida em que aparecem vasilhas. Vira e vê o cão que já não está lá, revirando as cadeiras para agradá-la, percebe fotos guardadas em um relicário de conchinhas, que se esvaem no tom escuro dos tacos em que pisa. Não se sente nostálgica, apenas exausta. E quando caminha pros quartos esbarra em uma lasca do assoalho que se levanta. Para. Lenta, reconstrói agora o corredor onde ele deixou cair todos os fósforos da caixa. A caixa estava virada para baixo e o cigarro apagado assim ficou. Apanhou cada um, inclusive o que se escondeu na falha do assoalho, e sumiu. Imagina a composição da cena não exatamente como era, mas melhor, como era a casa em seus sonhos, logo que ali chegou. As plantas que pretendia cuidar, e logo secaram, lá estavam verdes, como no primeiro dia. O amor que sentia estava ali também, como no primeiro dia. E assim, caminhando, desconsiderou o vazio, desconsiderou os fatos, desconsiderou o tempo.

A permanência nesse estado de latência contida parece tê-la entorpecido. Sentiu dores nas pernas por não ter atinado que ali não havia onde se sentar, e havia passado horas em pé. Sem perceber se senta, e o alívio a faz notar uma mancha na parede. Aqui não se pode mais afirmar se realmente vira qualquer coisa ou se fora mera reconstrução. Ninguém jamais descobrirá uma versão última desse instante que agora relato, como se fosse agora. O que ocorreu foi que subitamente acordou. Localiza-se na antiga casa vazia, e sente, de uma só vez, todas as dores que lhe afligem. O tamanho da dor não se manifesta a contento, intrigada pela mancha azulada, escura, que percebe. Levanta-se meio cambota e vai até a parede. Tateia o leve sombreado que lhe parece uma mancha e lê ali uma frase em inglês – don’t let yourself go. Parece se confortar ao reconhecer o que lê, sem bem saber mesmo se conhece, se já ouviu, ou se leu. Corre ao quarto e busca tinta e pincel. Com preto desenha a frase, que passou aí a adornar a parte baixa da parede da sala oposta ao corredor. Senta-se outra vez e sorri. Sorri mais, até não se conter. Tomba no chão daquele riso que dói a barriga e gradualmente passa de soluço a choro. Agora chora como se fosse o último suspiro de seu peito, e, enquanto chora, escreve na parede frases que não conhece.

Dessas frases é possível lembrar algumas. Destacar passagens que enaltecem o caráter revelatório, ou a apatia angustiada da qual Lígia se libertou. E dali não se sabe o que é realmente dela, o que viu na parede, o que ouviu, ou o que leu. Mas é certo que se podia ler assim, no corredor

meus olhos são também carne e osso
mas é de amor e só meu coração
e ainda vejo, choro e penso,

sem entender bem o porquê


O princípio de um rápido exercício, não se sabe se de literatura ou de revelação. Na sala, passagens simplórias que remetiam a seu próprio gesto

sujou os dedos de guache preto
limpou os pés e foi dormir

falta lirismo,
falta cor
e rancor
pra transbordar delírio,

desequilíbrio e dor

Bem perto do teto, no quarto do meio

com o fim conjugou todos os verbos
e se desvencilhou do medo
que com a alma enxergo
ao menos à pouca luz,
assim tão cedo

da janela exaustas nuvens
apontam o alívio e a brancura

dos quais se afasta cega e pura

Lígia encheu compulsivamente todas as paredes da casa, com três diferentes tons de tinta preta, não se sabe provenientes de onde. Ao fim, se deitou no meio da sala ainda mais cansada, observou as quatro paredes com todas as variações de tamanho da letra, leu trechos que ainda não reconhecia, e se concentrou no teto, intacto, que ali virou seu céu. Só então parou de chorar, aquele choro fininho que alimentou a escrita, que fez brotar essa última gota. Sem querer fechou os olhos, e não tinha mais nem céu nem letras. A casa ainda está lá com as paredes pintadas como ela a deixou. Nenhum vestígio de tinta ou pincel, nada que sujasse o piso, nenhuma gota de amor no chão. Derramou sua prosa poética e alguns versos, como os que aqui se lembram, de uma só vez, movida por um só impulso. Relembrou, homenageou, ou apenas leu nas paredes, alguns autores que não esquecia, e não se sabe se nessas horas se confundiu, se recriou ou se, consciente, citou

Um poema que, ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

Algumas citações de mais fácil identificação, como se viu, em outra parte, uma fala de Lear

Estarias melhor na sepultura do que enfrentando com o corpo descoberto estes extremos da estação.

Uma banalidade de Pascal que se refere aos dois infinitos

Quando se lê depressa demais ou demasiado devagar, não se entende nada.

E muitas outras citações podem ali ser encontradas, se não se deve exatamente dizer que tudo não passa de citação.

Lígia, depois disso, foi embora. Fechar os olhos desmoronou os seus refúgios e não teve outra opção a não ser deixar imediatamente a casa, sua última obra, sua derradeira emoção. Levantou ainda de olhos fechados e ao abrí-los reconstruiu imediatamente a sala. Seu sofá de veludo grená, o tapete e as luminárias, o artesanato barroco, os quadros que ganhou dele. Foi direto, sem titubear, à porta e saiu, sem trancar. Ao chegar à rua nenhum estranhamento, nem sequer memória, tristeza, dor, nada. Apenas um corpo fisiológico e um aparato que calcula, sabida agora que morreu seu coração.

2 Comments:

  • Ah! que bárbaro, amigo.
    Se for assim eu também quero. E que história é essa de não ter conseguido, escreveu com louvor.
    Creio que agora me verá muito pouco na internet... abraços
    Miroca... nem precisava assinar, né?

    By Blogger Mirian Silveira, at 7:14 PM  

  • Oi, foi você que comentou no meu site? Clicando no seu perfil, dá erro, tive que encontrar por outros meios. A Cult publicou um terço do texto, digamos. Vou colocar o resto lá. O seu texto ainda não li, vou ler.

    By Blogger João Pedro, at 5:13 PM  

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